segunda-feira, 13 de julho de 2009

Meia Banda

Chovia no sertão de Goiás. Ainda era tarde. E precisava chegar à capital federal ainda naquela noite. Como os dias eram dias duros e secos, fui tentado a pagar uma viagem clandestina, conseqüentemente mais barata. Além de mim e do motorista, que me parecia ter bastante experiência, um jagunço daqueles fortes, altos e brabos de fazenda grande e duas moças bastante distintas. O coche não era dos piores e lá fomos nós nos embreando no sertão central do Brasil. Afinal, parecia que a viagem iria ser das divertidas. Poderia até fazer amizades com os estranhos que me acompanhavam, quem sabe? Trocar idéias. Ter visões diferentes dos meus pontos de vista já tão arraigados. Queria até mesmo ser convencidos do contrário sobre alguns pensamentos já velhos e desgastados. E a viagem começou. Já se fazia tarde para a noite. As luzes da cidade começavam a ascender, assim como as estrelas que uma a uma iam furando as nuvens esparsas do céu. A chuva cedia. Perdia força à medida que o acanhamento daquelas cinco pessoas desconhecidas iam-se diminuindo naquele espaço minúsculo que a circunstância teimou em nos colocar. Como ganhei o banco da frente com a anuência do motorista ao troco de alguns trocados a mais no preço da passagem, me senti no direito, herdado, de dar o tom nos assuntos dentro do automóvel. Pensei cá com os meus botões. Como colocar o assunto para um peão de fazenda, duas mocinhas delicadas, além de mim, claro. O motorista não precisava se perder nos assuntos da viagem para não se distrair com a estrada. Seria melhor assim. Pensei num assunto em comum. Futebol, elas poderiam não entender. Política, desperta mais paixões e raivas sem sentido que o jogo dos vinte e dois. Música? Sim música, afinal é um assunto que domino. E estávamos em Goiás, terra da música regionalista caipira. Além de tudo poderia até encantar as mocinhas dizendo a elas que toco um vasto repertório que possuo numa pasta de cifras. Estava decidido, seria música. Quando respirei para colocar a primeira frase que foi pensada com cuidado e delicadeza para não agredir os gostos e ouvidos de ninguém, o motorista solta essa: - e o Vila ontem hein? Vocês viram? As meninas imediatamente se entreolharam e disseram em uníssono: - Jogaço! Três a zero foi pouco naqueles gnomos verdinhos do Goiás! E começaram os três a comentarem os detalhes do jogo, como os cartões aplicados, as faltas não dadas e o pênalti que não existiu a favor do Goiás. Mas que mesmo assim o juiz marcou com firmeza. Como o futebol é um esporte quase santo, um milagre foi operado. O goleiro não se mexeu na hora do chute e a bola foi parar nas mãos dele. Justiça! Uma delas exclamou com o orgulho no peito. “Pênalti roubado não entra”. E assim o assunto se desenrolou entre os três como se ninguém mais houvesse no carro. Percebendo o meu silêncio e do calado jagunço o motorista pergunta: - o amigo aí atrás não torce pro Goiás, certo? Ele responde seco: - Não. Um hiato se faz no carro, só se ouve o barulho alto do motor e os pneus no asfalto. Todos esperávamos o complemento do comentário da negativa em torcer pelo time que havia perdido a peleja na noite anterior. Antes do motorista complementar um comentário ele responde desviando o olhar da janela que fitava: eu pesco. Só isso. E não falo de futebol pra não arrumar briga. E briga com aquele homem era coisa que poucos iriam querer. Para não perder a educação o motorista comenta: - então todos somos torcedores do Vila, certo? E me fita com o olhar aguardando aprovação. Eu como bom diplomata que sou me peguei pensando em responder que sim. Afinal de contas, quando viria aquelas pessoas novamente? Seria melhor responder que sim para não causar desconforto. Mas o sangue alvinegro falou mais alto. Respondi quase como o jagunço. Não! Mas a invés do hiato, já tratei de me explicar rapidinho. Sou atleticano. Sou mineiro e torço pro Galo. Alívio para mim e indiferença dos outros quatro. Depois disso, mais um hiato. Pensei em puxar assunto de pescaria com o tal amigo do banco de trás. Mas meus conhecimentos se baseavam em dar banho em minhocas nas barragens que ia quando criança com meu pai. Achei que iria fazer papel de bobo, mas tomei coragem e o fôlego juntos. Afinal poderia, com aquele assunto, trazer aquele pobre coitado para o meu lado da viagem. Já que fui traído pelo motorista quando tirou da minha boca a oportunidade de demonstrar meus conhecimentos de música, elaborei uma pergunta em que a resposta eu conheceria. Não perguntaria de tipos de peixes, iscas anzóis, enfim nada que fugisse ao meu parco domínio dos assuntos de pesca. Preparei-me para a inquisição, e no mesmo momento o motorista solta outra: e como anda a pesca de peraputanga no alto Araguaia? O jagunço se arruma no banco traseiro do carro, se preparando para tecer um longo comentário ao assunto que ninguém ali dominava como ele. E responde seco, - Já foi melhor. Um pequeno hiato e depois disso. “– tem muita poluição nesses dias. O rio ta morrendo”. Um triste silêncio invade o carro. Parecia que estavam velando um moribundo. Talvez as lembranças dos “verões” no Araguaia tenham vindo à memória de todos. Foi nesse momento que me senti um estrangeiro no meio daqueles outros.
O silêncio começou a me incomodar. Queria um som que fosse diferente do ronco do motor e dos pneus no asfalto embalados pelos longos suspiros de saudade de um tempo que ficara na memória deles. Pensei em conversar com as meninas. Teria que ser com as duas ao mesmo tempo para que não pensassem que estava escolhendo uma a outra. Afinal, nós homens é que somos os escolhidos. E deixaria isso por conta delas. Elas que resolvessem quem teria a felicidade de me conhecer. Quem teria o prazer da minha cara companhia. Elas me pareciam serem estudantes. Iria perguntar alguma coisa assim nesse sentido. Mas me prometi que não demoraria, senão o motorista atropelaria novamente as minhas frases e intenções. Sem muito pensar ou respirar perguntei a elas: e vocês duas estudam? O motorista imediatamente mandou-me calar. Pensei, cá comigo. Mas será que fui tão ofensivo em perguntar se as meninas estudam? Tudo bem, a educação nesse país é mesmo uma vergonha, mas não precisava me mandar calar. De repente o barulho seco invadia o automóvel. Era isso. Ele queria ouvir. O barulho do solavanco do pneu batendo no asfalto. O inconfundível barulho de pneu furado. Um misto de alívio, pela repreensão não ter sido pela minha pergunta, e receio, por um pneu furado no meio do nada no sertão central do país. Encostamos-nos à lateral da rodovia. Já se fazia longa a noite. Estrelas furavam o tapete azul marinho do escuro céu. Ouvia-se até o barulho delas a dançar naquela noite. Tamanho o som do silêncio da noite deserta. Descemos do carro e não tivemos dúvida. Pneu furado. O motorista nos aguardou a tirar as poucas bagagens do porta-malas e ficamos ali imóveis, impassíveis, aguardando o motorista a trocar o pneu. Achamos todos que o jagunço, sendo forte e acostumado a trabalhos braçais, iria se prontificar a ajudar. Mas olhando mais de perto, nem forte, e nem muito alto o era. Estava mais para gordo do que para forte. A altura era dada por um tamanco de homem manco, que alinhava a altura de uma perna mais curta que a outra. Nem jagunço o cabra era. As meninas me olharam, com a minha roupa de homem de escritório e logo me julgaram a almofadinha. Que não iria colocar a mão na massa para não me sujar. De certo, pensaram de mim um janota qualquer. Na mesma moeda, percebi que não eram tão distintas assim as mocinhas. Trabalhavam à noite, ajudando os menos afortunados no amor a receberem seus mimos por um valor a mais na passagem. Estavam indo pegar um ônibus para a alta temporada de uma obra federal no Tocantins. Canteiro de obra era certeza de faturamento alto para elas, vendedores de pingas, bíblias e outros devaneios. Resolvi tomar conta da situação. Arregacei as minhas mangas de camisa fina como pensavam, e fui ajudar o pobre motorista. Somente ali percebi que os óculos que ele usava eram mais grossos do que supus no primeiro encontro. Era considerado um quase cego. Ele dizia que as vistas só eram ruins pra perto. Pra longe tava muito bem. Quando vi o estado daquele pneu disparei sem pensar e nem respirar: - mas esse pneu tá completamente careca! E ele respondeu na medida. - Que isso? O pneu tá meia banda. Ainda roda muito. Até rodava, mas não comigo dentro daquele carro meia banda. Sem darmos um pio uns com os outros chegamos ao destino depois de deixar as moças no entroncamento para o Tocantins e o pescador metido a jagunço próximo a um sítio. Prometi a mim que nunca seria assim, meio jagunço, meio pescador. Meio moça-da-vida e meio donzela, meio cego e meio são. Meia banda nunca.

Um comentário:

Unknown disse...

MUITO BOM!
Começou meio chatinho, não prendeu de cara. Mas foi ganhando forma e um gran finale!

Gostei das licenças poéticas, muito bem encaixadas. E do almofadinha. hehehe

Abração!