quinta-feira, 24 de setembro de 2009

À minha amiga, futura escritora.

O retro-gosto amargo do café sem doce arde na boca. É um gosto forte, que marca. Não é possível ignorá-lo. Melhor mesmo é aprender a conviver com ele. Penso que a bebida das arábias deve ser companhia indispensável aos escritores. O café, mesmo que requentado os manterá acordado até altas horas da madrugada quando absortos nas suas linhas. Aquecerá o peito quando o vazio das letras tomarem conta do seu coração. Será esse seu negro companheiro, ao seu gosto, mas penso que assim o deva ser. Eu prefiro o café com a companhia dos amigos. Logo depois do almoço, ou ao acordar ao lado da amada. Prefiro que o seja como um recheio dos bons momentos. E pelejo para que momentos doces seja constância na minha estada por aqui. Deixo o amargor para os grãos torrados.
Assim como a marca indelével do café nos marca a boca, a vontade de escrever obedece ao chamado dos deuses. Não há como escapar quando se percebe que as letras dão forma, conteúdo e sentido na vida do pobre ser. Pobre, no sentido do ofício. Como deve ser dolorosa a arte de transformar seus sentimentos em alheios. Quão dura deve ser a vida de quem doa seus sentidos à interpretação do mundo pelos seus olhos. Um trato heróico, abnegado, pois quando suas idéias ganham as páginas, não pertencem mais a quem lhe deu formas, mas aos leitores que a tomam de assalto. Escrever é ser abnegado de coração e de alma. É abrir-se para o mundo, é colocar a bunda na janela. Tomarás tapas, mas carinhos não faltarão. Em dias como esses, mais doloridos devem ser. Pode escolher viver com a vida certa e sem brilho do burocrata. Cartão de ponto, oito as dezoito com uma hora de intervalo. Os papéis e as letras que seriam seus companheiros seriam bem menos garbosos dos que os lhe dão forma hoje aos sonhos e devaneios. Mas terias tu, vida certa e paga. Terias letras, de cambio. Terias hipoteca e viagens, ao menos uma para o exterior. Terias sim, talvez, quem sabe, um companheiro, sem muitas venturas, mas um companheiro. Um companheiro devidamente ao seu tamanho de burocrata. Assim, de vida certa teria a vida. Não é menos nem mais, ter a vida burocrata. É uma das escolhas mais corajosas que percebo. Mais corajosa que se optar por ser herói. Aliás, o herói não escolhe. Não é um ser consciente das suas escolhas, é somente um instrumento dos deuses aos seus idealismos para com os humanos. Quem deve ser ovacionado é o burocrata. Escolheu por vontade própria abrir mão da vida glamorosa para viver a vida simples e dura do cotidiano. Ao invés do burocrata ser o contra-ponto do herói, ele o completa. Qual a vida que gostaríamos de ver, de ter? A vida do super-homem, ou a rotina do Clark Kent? Queremos voar pelo mundo ou tomar café da manhã com Lois Lane? Ter filhos com ela? A escolha de Clark pode ser feita. A do super-homem não. Ele não tem escolha. Pobre coitado. Ele não recebeu a maior dádiva. O livre caminho. Ele simplesmente obedece ao chamado e vai, sem saber por quê.
O escritor é o único que pode ser um herói e um burocrata. Esse sim pode transitar por esse dois mundos, como se trocasse de roupas numa cabine telefônica e virasse de hora pra outra, um desse seres com super poderes. A escolha do ofício da escrita deve ser de muito suor, muitas lágrimas, muitos calos na alma para que se tenha uma obra aplaudida. E sim, lembre-se a obra será aplaudida, você pouco. Sua criação será maior que vós. Terá vida além da sua. Quando você se for, sua obra ficará. Viverá além. Alçará vôos de longo alcance maiores que uma alma mortal jamais conseguiria aqui pelos lados dessa terra. Qual dos caminhos será o seu? Para ajudá-la beba no maior herói das letras. Drummond, o poeta de Itabira. Foi poeta e foi burocrata. Esse foi herói com escolha. O maior dos heróis. Degluta Arturo Bandini e saiba como é escrever com as vísceras. Depois disso, minha querida amiga, me convide para o nascimento da sua cria, seja ela qual for, pois seu amigo do lado de cá escolheu ser burocrata, uma vez que a arte das letras está longe do meu alcance. Prefiro ser um escritor que não exista, literalmente um escritor virtual.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Bobó de camarão com casca (Receita para o Christian)

Comecei cedo, bem cedo a freqüentar a cozinha de casa. Como filho mais velho da casa fui intimado logo nos primeiros anos de vida a dar uma forcinha nos afazeres domésticos. A vida era um pouco mais dura que agora, e a minha presença na cozinha aliviava o peso da solidão e da labuta diária da mãe. Nesses primeiros passos, o que sobrava para mim eram as louças. Lembro de pilhas delas, gigantescas, quase indestrutíveis. Mas ia vencendo-as pedacinho por pedacinho. Depois da evolução nessa fase fui promovido. Já tinha idade suficiente para me chegar ao fogão. A promoção tinha dessas nuances. Destreza não bastava, tinha que ter idade suficiente para a tarefa. Então comecei a torrar o arroz do almoço. Somente torrava, para que não queimasse. Ainda não podia colocar os temperos, muito menos a quantidade de água. Mas ficava ali ao lado, acompanhando tudo. Acho que meu gosto pela cozinha vem daí. Anos depois, redescobri o prazer pela cozinha. Um dia, um amigo me pediu para fazer um bobó de camarão. O fiz e certo sucesso apareceu. Meus amigos são muito generosos comigo. Essa é a verdade. Nada demais no prato. Como a propaganda boca a boca é a melhor que existe (aqui é um publicitário que fala) a notícia correu. Outro dia fui intimado em fazer o bobó na casa de uma amiga. Chegamos lá com todos os apetrechos culinários e eu, como havia feito agradado as pessoas na versão anterior, me apossei da cozinha com ar de autoridade. Como em todos os nossos almoços, jantares, reuniões, havia sempre muita alegria, vinhos, cervejas. Afinal, era uma turma de faculdade que deixou o coleguismo nos primeiros dias e se firmou logo em sólidas amizades. Até alguns casamentos saíram desse meio. O almoço em questão era na casa da Letícia, amiga de longa data da Joana, essa amiga que conheci na faculdade, na época namorada do Christian, o dono do bobó. Para aumentar a já antiga e conhecida arrogância, que naqueles dias me acompanhava sempre, fui apresentado à prima da Letícia e como sempre, fui alvo da cupidez dos meus queridos amigos. Absorto aos ingredientes, às taças de vinho e aos belos olhos verdes da Alessandra, comecei o preparo do prato. Um bom bobó que se preze se faz com mandioca. Então, mandiocas ao fogo. Deixei-as cozinhar até quase ao ponto de se fazer um creme somente com o amassar de um garfo. Tiradas da panela de pressão, as amassei com um carinho a que se deve tratar um alimento, e as reservei. Azeite e dendê na panela. O dendê somente para dar um cheiro, pois o gosto, para nós mineiros é bastante forte, além do que meu amigo gostava de sentir o gosto dos camarões e o óleo oriundo da Bahia rouba o sabor de tudo quando em demasia. Minha tradicional pasta de alho e sal na panela, já com a mistura desses óleos devidamente quentes e cebolas, pimentões, vermelhos e verdes ao fogo. Um pouco de coloral, o indígena, extraído da semente do urucum em torra e pilado. Tomates, pedaços generosos, sem pele e sem sementes. Bem maduros. Panela neles. Depois dessa mistura deliciosa, pego o creme da mandioca e refogo juntamente dos legumes ao dente na panela. Vou colocando leite até o creme se dissolver já nesse ponto o molho está bem rosado e borbulhante, somente aguardando uma generosa porção de camarões, que já estava devidamente limpo e reservado. O ideal era puxá-lo no azeite, que seria usado naquela refoga dos legumes, mas como podem perceber, esqueci desse detalhe. E os camarões como se estivessem ali, meio vivos, me lembravam que eles precisavam entrar no momento certo, nem cedo demais, nem muito tarde. Cedo demais comeríamos chicletes ao sabor do mar, muito tarde, meio crus e com pouco sabor. Um truque para meus amigos culinaristas: descasquem os camarões e passem as cascas num azeite quente, retire as cascas usem esse óleo para continuar o prato. O sabor vem em toda sua plenitude. Não o fiz, e continuei às atenções às panelas, aos vinhos e aos olhos que brilhavam. O arroz já estava quase pronto, soltinho, branco, assim como eu vi minha mãe fazendo milhares de vezes na beira do fogão em casa. Esse era difícil de errar. Juntei os camarões sem cerimônia, deixei-os cozer por alguns minutos. Um cheiro muito bom se espalhou pela cozinha, depois pela casa. Já era adiantada a hora, além da fome, havia o vinho, que sempre aumentava nosso apetite. Servido numa bela travessa, o arroz e o bobó. As pessoas avançaram. Nesse momento o ar pára. Toda a receita passa na minha cabeça. O medo de ter faltado com algum ingrediente, ou ter colocado algo que não fazia parte, é o pior dos medos. No instante da primeira prova o aprendiz de cozinheiro aqui fica sem respirar. Logo após a primeira aprovação do sabor me vi mais relaxado. Os comentários surgiam por toda a mesa. Hum, muito bom, delicia. Claro que o tempero da fome é o melhor deles, assim, as pessoas começaram a ficar mais silenciadas. De repente percebi as pessoas tirando as cascas dos camarões. Havia simplesmente esquecido de tirar as cascas dos camarões! O que fazer numa hora dessas? Tratar com naturalidade ou assumir meu erro absurdo? Como meus amigos não tinham lá muito conhecimento culinário optei por abusar da boa vontade deles, ainda bem que eram amigos, e para que saibam todos, ainda o são. O Christian olhou para o lado, comentou com a namorada bem baixinho: -tem casca! O camarão ta com casca! Mas o sabor ta bom. Mas ta com casca! A Joana me olhou e disse: Arturo! O camarão ta com casca. Eu nem olhei para ela, para que diminuísse a importância da tragédia e respondi com um tom de voz natural, que aprendi a fazer quando da minha longínqua época de rádio: é assim mesmo! Bobó de camarão é com casca! Podem imaginar o que veio a partir daí? Uma gargalhada generalizada, não pelo erro nas panelas, mas pela insistência em afirmar que a coisa era mesmo daquele jeito. Somente os amigos para agüentar uma dessas. Ainda hoje, quando encontro com um ou com outro, damos muita risada da presepada nas panelas. Por que o que vale é termos histórias para contar.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Longas Noites

Ontem à noite, em meio chuva, te esperei. Aguardei-te para mais uma vez passarmos a noite juntos. Caminhar pelas largas nuvens que cobriam a nossa noite, pelos vastos campos, verdes pastos, lúgubres caminhos, com minhas mãos molhadas atadas às suas. Quando você chega faz meu coração acalmar, minha respiração ir mais fundo e meus olhos piscarem menos. Tudo para que eu não perca nem um segundo das suas parcas vindas ao meu tarde mundo onírico. Seu coração puro de menina, seu modo simples e casto de ver o mundo, falam mais de você do que julgam os olhos dos outros. Eu que a tenho em minha alma sei, tu és menina vestida de mulher. Ainda tens os medos dos trovões das madrugadas. Sei que ainda se encolhe na cama no relampejar de entre as nuvens. Saiba minha gueixa, que aqui tens seu porto, seu seguro. Chegue quando as tempestades se fizerem fortes, quando o cansaço bater e quando quiser dividir a felicidade dos bons ventos. Tens as portas e janelas abertas com brisas claras e brandas para o seu pouso. Fique o quanto quiser e esteja sempre. Mas se tiver que se ir que vá sem dar sinal. Vá de abrupto jeito a fim de diminuir o dolo da falta que ficará no vazio do seu espaço.
Espero-te nas noites de estrelas, ou não. De luas ou não. De nuvens ou não. Enquanto você não vem, não solto meu barco do cais, não retiro as amarras e fico num misto de ir e vir entre o sonho e o desperto.