quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Bobó de camarão com casca (Receita para o Christian)

Comecei cedo, bem cedo a freqüentar a cozinha de casa. Como filho mais velho da casa fui intimado logo nos primeiros anos de vida a dar uma forcinha nos afazeres domésticos. A vida era um pouco mais dura que agora, e a minha presença na cozinha aliviava o peso da solidão e da labuta diária da mãe. Nesses primeiros passos, o que sobrava para mim eram as louças. Lembro de pilhas delas, gigantescas, quase indestrutíveis. Mas ia vencendo-as pedacinho por pedacinho. Depois da evolução nessa fase fui promovido. Já tinha idade suficiente para me chegar ao fogão. A promoção tinha dessas nuances. Destreza não bastava, tinha que ter idade suficiente para a tarefa. Então comecei a torrar o arroz do almoço. Somente torrava, para que não queimasse. Ainda não podia colocar os temperos, muito menos a quantidade de água. Mas ficava ali ao lado, acompanhando tudo. Acho que meu gosto pela cozinha vem daí. Anos depois, redescobri o prazer pela cozinha. Um dia, um amigo me pediu para fazer um bobó de camarão. O fiz e certo sucesso apareceu. Meus amigos são muito generosos comigo. Essa é a verdade. Nada demais no prato. Como a propaganda boca a boca é a melhor que existe (aqui é um publicitário que fala) a notícia correu. Outro dia fui intimado em fazer o bobó na casa de uma amiga. Chegamos lá com todos os apetrechos culinários e eu, como havia feito agradado as pessoas na versão anterior, me apossei da cozinha com ar de autoridade. Como em todos os nossos almoços, jantares, reuniões, havia sempre muita alegria, vinhos, cervejas. Afinal, era uma turma de faculdade que deixou o coleguismo nos primeiros dias e se firmou logo em sólidas amizades. Até alguns casamentos saíram desse meio. O almoço em questão era na casa da Letícia, amiga de longa data da Joana, essa amiga que conheci na faculdade, na época namorada do Christian, o dono do bobó. Para aumentar a já antiga e conhecida arrogância, que naqueles dias me acompanhava sempre, fui apresentado à prima da Letícia e como sempre, fui alvo da cupidez dos meus queridos amigos. Absorto aos ingredientes, às taças de vinho e aos belos olhos verdes da Alessandra, comecei o preparo do prato. Um bom bobó que se preze se faz com mandioca. Então, mandiocas ao fogo. Deixei-as cozinhar até quase ao ponto de se fazer um creme somente com o amassar de um garfo. Tiradas da panela de pressão, as amassei com um carinho a que se deve tratar um alimento, e as reservei. Azeite e dendê na panela. O dendê somente para dar um cheiro, pois o gosto, para nós mineiros é bastante forte, além do que meu amigo gostava de sentir o gosto dos camarões e o óleo oriundo da Bahia rouba o sabor de tudo quando em demasia. Minha tradicional pasta de alho e sal na panela, já com a mistura desses óleos devidamente quentes e cebolas, pimentões, vermelhos e verdes ao fogo. Um pouco de coloral, o indígena, extraído da semente do urucum em torra e pilado. Tomates, pedaços generosos, sem pele e sem sementes. Bem maduros. Panela neles. Depois dessa mistura deliciosa, pego o creme da mandioca e refogo juntamente dos legumes ao dente na panela. Vou colocando leite até o creme se dissolver já nesse ponto o molho está bem rosado e borbulhante, somente aguardando uma generosa porção de camarões, que já estava devidamente limpo e reservado. O ideal era puxá-lo no azeite, que seria usado naquela refoga dos legumes, mas como podem perceber, esqueci desse detalhe. E os camarões como se estivessem ali, meio vivos, me lembravam que eles precisavam entrar no momento certo, nem cedo demais, nem muito tarde. Cedo demais comeríamos chicletes ao sabor do mar, muito tarde, meio crus e com pouco sabor. Um truque para meus amigos culinaristas: descasquem os camarões e passem as cascas num azeite quente, retire as cascas usem esse óleo para continuar o prato. O sabor vem em toda sua plenitude. Não o fiz, e continuei às atenções às panelas, aos vinhos e aos olhos que brilhavam. O arroz já estava quase pronto, soltinho, branco, assim como eu vi minha mãe fazendo milhares de vezes na beira do fogão em casa. Esse era difícil de errar. Juntei os camarões sem cerimônia, deixei-os cozer por alguns minutos. Um cheiro muito bom se espalhou pela cozinha, depois pela casa. Já era adiantada a hora, além da fome, havia o vinho, que sempre aumentava nosso apetite. Servido numa bela travessa, o arroz e o bobó. As pessoas avançaram. Nesse momento o ar pára. Toda a receita passa na minha cabeça. O medo de ter faltado com algum ingrediente, ou ter colocado algo que não fazia parte, é o pior dos medos. No instante da primeira prova o aprendiz de cozinheiro aqui fica sem respirar. Logo após a primeira aprovação do sabor me vi mais relaxado. Os comentários surgiam por toda a mesa. Hum, muito bom, delicia. Claro que o tempero da fome é o melhor deles, assim, as pessoas começaram a ficar mais silenciadas. De repente percebi as pessoas tirando as cascas dos camarões. Havia simplesmente esquecido de tirar as cascas dos camarões! O que fazer numa hora dessas? Tratar com naturalidade ou assumir meu erro absurdo? Como meus amigos não tinham lá muito conhecimento culinário optei por abusar da boa vontade deles, ainda bem que eram amigos, e para que saibam todos, ainda o são. O Christian olhou para o lado, comentou com a namorada bem baixinho: -tem casca! O camarão ta com casca! Mas o sabor ta bom. Mas ta com casca! A Joana me olhou e disse: Arturo! O camarão ta com casca. Eu nem olhei para ela, para que diminuísse a importância da tragédia e respondi com um tom de voz natural, que aprendi a fazer quando da minha longínqua época de rádio: é assim mesmo! Bobó de camarão é com casca! Podem imaginar o que veio a partir daí? Uma gargalhada generalizada, não pelo erro nas panelas, mas pela insistência em afirmar que a coisa era mesmo daquele jeito. Somente os amigos para agüentar uma dessas. Ainda hoje, quando encontro com um ou com outro, damos muita risada da presepada nas panelas. Por que o que vale é termos histórias para contar.

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